Mantido o acelerado ritmo dos primeiros cinco meses do ano, o desmatamento na Amazônia chegará ao patamar anual de 20 mil quilômetros quadrados em 2008, o dobro do registrado no ano passado. Será mais uma evidência de um paradoxo tipicamente nacional: o País convive com uma das mais avançadas legislações contra crimes ambientais do planeta e a ineficiência do aparelho jurídico-burocrático responsável por aplicá-la com rigor. Um estudo inédito demonstra que o esforço do Ibama para multar e fiscalizar se esvai diante de juízes mal preparados, da tramitação arrastada dos processos ou da precariedade da infra-estrutura necessária para a lei sair do papel.
Realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e intitulado A Destinação dos Bens Apreendidos em Crimes Ambientais no Pará, a que CartaCapital teve acesso com exclusividade, o levantamento avaliou o modus operandi da Justiça ao lidar com criminosos ambientais. Concluiu que não é por acaso que estes últimos nadam de braçada e, muitas vezes, conseguem driblar a lei na base do mínimo esforço.
O Imazon analisou a jurisprudência nacional dos tribunais federais e se concentrou no Pará, campeão do desmatamento em 2007. Suas conclusões também servem para uma avaliação do que ocorre em outros estados da Amazônia Legal, partindo da análise dos processos administrativos internos do Ibama, de apreensão e destinação de produtos e equipamentos associados aos crimes ambientais. Foram analisados 1.025 processos referentes a bens apreendidos, aptos à chamada destinação social (como usar a carne de gado irregular em cestas básicas), e 80 lotes de bens efetivamente destinados pela Superintendência do Ibama em Belém do Pará, entre 2006 e 2007. Avaliaram a jurisprudência de casos decididos em última instância nos Tribunais Regionais Federais, sobre processos de oito estados.
As conclusões não são animadoras: por desconhecer as leis ambientais, grande parcela dos juízes prefere aplicar outros códigos processuais. Além disso, muitos concedem decisões contraditórias para liberar as apreensões, o que gera insegurança nos fiscais do Ibama quando têm de dar um destino ao bem apreendido, como, por exemplo, realizar um leilão público de madeira extraída ilegalmente.
Em quase metade dos casos julgados, o trator, a motosserra ou os caminhões utilizados são devolvidos aos infratores, que se tornam fiéis depositários das armas usadas em seus crimes. “É preciso chamar a atenção do Judiciário para que ele perceba que o caminhão usado no transporte de madeira é arma do crime ambiental. Se isso sai de circulação, evita-se que a arma do crime continue sendo usada”, afirma o diretor de fiscalização do Ibama, Flávio Montiel. Críticas semelhantes ressoam também na cúpula do Judiciário. “É como devolver o revólver a um sujeito acusado de assassinato, que permanece solto e ainda por cima com a arma em punho”, afirma o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Antonio Herman Benjamin. Ele integra, com destacada influência, a primeira turma do STJ, responsável por uniformizar a jurisprudência em questões ambientais no Poder Judiciário. Consultado sobre as conclusões da pesquisa do Imazon, foi enfático:
“Reconheço que o tratamento jurídico dado pela lei aos bens apreendidos e utilizados na prática de crimes ambientais é ultrapassado e precisa urgentemente ser reformado pelo Congresso Nacional. Mas não basta ter uma lei ambiental boa e moderna, se as regras de processo civil e penal inviabilizam as punições”. Acrescente-se a esse quadro a falta de preparo dos juízes em assuntos relativos a questões ambientais. A pesquisa indica que parcela considerável dos juízes desconhece a Lei de Crimes Ambientais ou privilegia a aplicação de outros princípios legais. Esse padrão de conduta vai contra a máxima que prevalece no Direito, segundo a qual se deve dar preferência às leis mais específicas, em vez de buscar elementos genéricos do Direito Constitucional ou Civil para aplicar aos casos. O ministro Benjamin tem uma explicação para essa postura. “Até pouco tempo atrás não havia cursos de Direito Ambiental nas faculdades. E o tema não era exigido nos concursos.”
Os descaminhos do Poder Judiciário representam um obstáculo a mais naqueles casos em que os infratores recorrem das decisões administrativas. “A lentidão na tramitação dos processos e a falta de preparo dos julgadores contribuem para a pouca efetividade da lei nos processos ambientais”, avalia Luiz Fernando Villares, consultor jurídico do Ministério do Meio Ambiente.
Na opinião de Villares, quem possui meios para entrar na Justiça quase sempre consegue de volta os bens apreendidos, na prática tornando inócua a fiscalização do Ibama. Os argumentos jurídicos utilizados na defesa dos infratores mencionam o valor do bem apreendido, em geral muito superior à multa, a falta de estrutura da Justiça para preservar os equipamentos retidos e o fato de serem instrumentos de trabalho, quando sua propriedade é comprovada. Em 55% dos casos, argumentam que o bem apreendido não interessa para a investigação processual. Na hora de negar o pedido de restituição dos bens, os magistrados tendem a considerar que não foi comprovada a propriedade e que o bem apreendido é de interesse para o processo. Com menos freqüência, admitem que há suspeita de ter sido adquirido com dinheiro ilícito (como na venda de madeira ilegal) ou que o bem apreendido servirá para a prática de outros crimes ambientais (38% dos casos).
Entre os 24 processos analisados em oito estados, já na esfera dos recursos aos tribunais, os desembargadores negaram a restituição em 54% dos pedidos e autorizaram em 46%. A análise dos julgamentos também mostra que em apenas 38% das sentenças foi mencionada a Lei de Crimes Ambientais, o que evidencia o desconhecimento da legislação.
“Nossa preocupação é com a eficácia do combate ao crime ambiental”, explica Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon e coordenador do estudo. O instituto intuía que os bens apreendidos muitas vezes voltavam para as mãos dos infratores. Faltava comprovar. Mesmo com a intensificação das operações de fiscalização a partir de 2003, com quase 500 equipamentos apreendidos, cerca de 1 milhão de metros cúbicos de madeira embargados e bilhões de reais em multas, a baixa aplicação das penas minou esse esforço. “O desmatamento ilegal chega a mais de 80% do total e a sua redução é mais influenciada pela queda dos preços agrícolas do que pela fiscalização”, anota o estudo. Do valor total de multas aplicadas entre 2001 e 2004, apenas 2,5% foram arrecadados, segundo o Imazon. Um estudo da ONG Amigos da Terra, coordenado por Roberto Smeraldi, mostra que em 2007 a situação é ainda mais crítica: numa análise preliminar, constatou-se que somente 0,6% das multas foi pago.
Entre as boas iniciativas destacadas pelo estudo está o acordo entre o Ibama e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) do Pará. Desde 2006, o Ibama registra as estatísticas de bens que foram para leilões ou doações. Apenas 10% dos bens aptos aos leilões realmente seguiram adiante. O primeiro leilão de madeira apreendida foi feito na quinta-feira 15 de maio, com a oferta de 3.712 metros cúbicos, de um total apreendido de mais de 5 mil metros cúbicos. A parcela excluída do edital deveu-se à solicitação da Justiça Federal de Santarém, à revelia do acordo firmado entre os órgãos ambientais.
O estudo do Imazon sugere medidas para se dar um destino aos bens apreendidos, como a criação de fundos patrimoniais com as receitas de leilões, e o depósito em conta corrente dos valores arrecadados. Nesses casos, o objetivo é que o órgão ambiental destine rapidamente os bens, evitando a sua deterioração. Já as recomendações de mudanças são mais profundas. Sugerem reestruturar a fiscalização, que deve estar preparada para confiscar efetivamente os bens, com meios de transporte e armazenamento adequados.
Para não aumentar muito os custos, a proposta é se concentrar em bens de maior valor. A análise mostra que 15% dos itens apreendidos somam 80% do valor total – e 16% das multas respondem por 84% do valor geral. “Enfocando em menos de 20% dos casos haveria melhores condições efetivas de punição”, escrevem os autores. Quando o bem é retirado das mãos dos criminosos, aumentam as chances de a questão ir parar na Justiça. Muitas vezes o Ibama faz a autuação, mas deixa os equipamentos com o próprio infrator, e, nesses casos, não chega ao Judiciário. Nos primeiros casos, a sugestão é preparar melhor os órgãos ambientais para disputas e acelerar e harmonizar as decisões. “A falta de especialização do Judiciário em casos ambientais e o dissenso sobre a responsabilidade para julgar a destinação dos bens podem atrapalhar a punição efetiva, à medida que os infratores passem a acionar a Justiça com mais freqüência”, escrevem. Para isso, sugerem a criação de varas especializadas em crimes ambientais.
Um dos fatores que podem impedir despachos tão contraditórios entre si é criar um padrão único de decisões, que deve vir de cima para baixo, a partir do STJ. A padronização poderia ser estabelecida por meio de uma súmula, na qual juízes de primeira instância não poderiam receber recursos contra a destinação administrativa de bens apreendidos em crimes ambientais. “Como a súmula é um mecanismo novo, regulamentado em 2006, seria necessário sistematizar o consenso de várias decisões favoráveis à destinação administrativa”, sugerem os pesquisadores do Imazon.
Para o ministro Benjamin, uma questão importante seria dar cursos e palestras para os juízes de primeira instância, de modo a prepará-los para os julgamentos. O problema da súmula, segundo ele, é que uma ação judicial pode levar até dez anos para chegar ao STJ, quando então o tribunal tem a chance de se manifestar. Ele mesmo nunca recebeu um processo que conteste a apreensão de bens no próprio tribunal superior. A questão costuma ser resolvida em primeira instância, e, depois de devolvido o bem, a ação perde o objeto. O governo dá sinais de que pretende reverter esse quadro. De acordo com Flávio Montiel, do Ibama, nos próximos 15 dias será publicado um decreto para tornar as multas ambientais mais eficientes, modificando diversos pontos da atual legislação e facilitando a destinação dos bens apreendidos. Será a conclusão de um grupo de trabalho criado no fim do ano passado, com integrantes da Casa Civil, cujo objetivo era aperfeiçoar a aplicação das multas aos infratores.
O processo administrativo, que hoje dura em média seis anos, será simplificado e deverá ser concluído em até um ano – e o infrator deverá pagar 70% da multa para poder recorrer. O Ibama terá mais autonomia e regras para dar um destino rápido aos bens. Já o gado de pastagens irregulares poderá servir a programas de combate à fome ou leiloado. Ou mesmo ser abatido no local, quando não for possível removê-lo.
O Ibama anda com tanto pé atrás que, em alguns casos, chega a pedir autorização judicial prévia para dar destino a um bem apreendido. E o que seria uma medida estritamente administrativa precisa aguardar a quase sempre morosa decisão judicial. Com as novas regras, pode-se esperar mais sintonia entre Judiciário e Executivo – e o “tremei, poluidores”, do ministro Minc, soará como algo mais do que mera frase de efeito.
Fonte:
Carta Capital /
SGeral